terça-feira, 26 de junho de 2007

reticências

levou as mãos aos bolsos das calças. depois aos o casaco. voltou a procurar na mala. e novamente nos bolsos. sabia que tinha escrito algures a morada dele. ainda por cima as portas eram todas azuis, as janelas todas com cortinados brancos. um gato em cada uma. amores-perfeitos! havia qualquer coisa sobre amores-perfeitos na soleira! mas não sabia a cor... e todas tinham amores-perfeitos na soleira.

sentou-se nos degraus da casa à sua frente e, com os cotovelos nos joelhos, apoiou a cabeça nas mãos. sabia que o tinha escrito num guardanapo e lembrava-se distintamente de o ter guardado no bolso das calças.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

no metro

Desceu as escadas a correr evitando as poucas pessoas que as subiam. Tinha de apanhar aquele para conseguir chegar a horas. Ou não muito atrasada. Atirou-se para dentro da carruagem empurrando quem já se amontoava à entrada. Protestos em uníssono com o apitar das portas.

Estava vermelha mas não do esforço. Era vergonha. Detestava que lhe fizessem aquilo e via-se obrigada a fazê-lo. Sempre. Soprou discretamente para dentro do decote e apertou mais a mala contra si. Ser roubada no metro era um dos seus receios diários.

Ao seu lado estava um jovem casal. Ele magro, alto e sorridente; ela pendurada nuns saltos altos, num fato com um corte fantástico e com uma cor saudável na pele. Não sabia se eram mesmo um casal mas, se não o eram, pouco faltaria. Demasiado próximos, demasiado sorridentes, demasiado concentrados um no outro. Tentou imaginar o prazer que ela deveria estar a sentir por ser assim cortejada (fosse ou não o par dela). Desviou o olhar invejoso e a recordação da mãe a dizer que sozinha aos 34 era uma vergonha.

De resto, tão morena em pleno Abril é porque anda num solário.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

início

Estava parada à entrada do quarto, agarrada ao seu urso. Lá dentro a luz de fim de tarde, coada pelos pesados cortinados, enchia de sombras cada espaço livre. Adivinhava o cheiro a rosas e lavanda que tanta impressão lhe fazia. Balançou o corpo sem sair do mesmo sítio para fazer a madeira ranger. Na poltrona moveu-se um vulto e ela conseguiu ver dois olhos brilhantes a espreitarem-na:
- Conseguiste vê-los? - perguntou a voz rouca e cansada
Fez que não com a cabeça e colou os olhos ao chão. Com um suspiro o vulto voltou a esconder-se na sombra da poltrona.
- Um dia vais ver. Eu sei que sim. Eu sei que sim.
Madalena apertou mais o urso contra si e foi a correr até às escadas. Conseguia ouvir as vozes dos irmãos que se aproximavam da porta da rua. Gostava de os ver chegar da escola, atirar as mochilas e os casacos para um canto, meterem-se uns com os outros. Faltavam seis meses (seis meses!) para ir para a escola, para partilhar com eles o regresso a casa. Então já não seria a bebé. Nem da mãe, nem do pai e, muito menos, dos irmãos.
Esperou até ouvir a voz da mãe saudá-los, ralhar-lhes, suspirar e desceu finalmente as escadas.